Opinião

Direito à saúde

07/08/2022

MARCELO ANTONIO CESCA

O objetivo do presente texto é abordar sucintamente o tratamento jurídico vigente no Brasil para o direito à saúde, assim compreendido tanto a saúde pública (SUS), como a saúde suplementar (planos e seguros privados de saúde).

De acordo com a Constituição Federal de 1988, a saúde pública é um direito social (art. 6º); deve ser cuidada pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios (art. 23, inciso II); integra nosso Sistema de Seguridade Social (art. 194); é direito de todos e dever do Estado, “garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (art. 196), sendo que as ações e serviços de saúde são considerados de relevância pública (art. 197), os quais integram uma rede regionalizada e hierarquizada, constituindo o Sistema Único de Saúde - SUS (art. 198), ao qual compete, entre várias atribuições, “controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos” (art. 200, inciso I).

O SUS é regulado pela Lei Federal nº 8.080/1990, segundo a qual a saúde é um direito fundamental do ser humano, “devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício” (art. 2º).

Pois bem.

A partir desse marco legislativo, as pessoas que não conseguem obter tratamento médico-hospitalar ou fornecimento de medicamentos diretamente no SUS, começaram a propor ações judiciais visando a compelir ao Poder Público a fornecer tais tratamentos e medicamentos, e hoje está pacificado nos tribunais do País que isso é um direito da pessoa e um dever do(s) ente(s) público(s), ainda que subsistam muitas discussões envolvendo se a ação judicial deve ser proposta contra o Município, contra o Estado/Distrito Federal ou contra a União, ou então contra todos, notadamente quando se trate de medicamento ou de tratamento de alto custo, bem como naqueles casos não cobertos pela rede pública integrante do SUS.

Outra discussão relevante diz respeito aos pedidos judiciais de fornecimento de medicamento experimental, ainda não aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), sendo que em 22/05/2019 o Supremo Tribunal Federal decidiu a questão da seguinte forma:

“O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido de registro (prazo superior ao previsto na Lei 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União”. [RE 657.718, red. do ac. min. Roberto Barroso, j. 22-5-2019, P, DJE de 9-11-2020, Tema 500.]

A iniciativa privada também pode prestar serviços de saúde, em caráter complementar, desde que devidamente autorizadas pelo Poder Público, é claro.

Os planos e seguros privados de saúde são atualmente regulados pela Lei Federal nº 9.656/1998, e estão submetidos às normas expedidas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

O art. 10 dessa lei federal estabeleceu o “plano-referência de assistência à saúde, com cobertura médico-ambulatorial e hospitalar”, compreendendo um conjunto de deveres e coberturas impostas a todo e qualquer plano ou seguro privado de saúde, sendo que, de acordo com seu parágrafo 4º, “a amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será estabelecida em norma editada pela ANS.”

Ou seja, a ANS estabelece um rol de coberturas de tratamentos que necessariamente devem ser ofertados pelos seguros e planos privados de saúde.

Diante disso, indagava-se: esse “rol da ANS” é taxativo, ou é meramente exemplificativo?

Vinha prevalecendo nos tribunais brasileiros o entendimento de que tal “rol da ANS” seria meramente exemplificativo, ou seja, o Poder Judiciário poderia obrigar às operadoras de planos e seguros privados de saúde a fornecer tratamentos e coberturas não previstas em tal rol, inclusive transplantes e procedimentos de alta complexidade.

Tudo isso mudou recentemente, mais precisamente no dia 08/06/2022, quando o Superior Tribunal de Justiça, em seu sítio eletrônico, noticiou a seguinte decisão colegiada, tomada por maioria de votos, bastante surpreendente para os usuários dos planos e seguros privados de saúde:

“Rol da ANS é taxativo, com possibilidades de cobertura de procedimentos não previstos na lista

Em julgamento finalizado nesta quarta-feira (8), a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu ser taxativo, em regra, o rol de procedimentos e eventos estabelecido pela Agência Nacional de Saúde (ANS), não estando as operadoras de saúde obrigadas a cobrirem tratamentos não previstos na lista. Contudo, o colegiado fixou parâmetros para que, em situações excepcionais, os planos custeiem procedimentos não previstos na lista, a exemplo de terapias com recomendação médica, sem substituto terapêutico no rol, e que tenham comprovação de órgãos técnicos e aprovação de instituições que regulam o setor.

Por maioria de votos, a seção definiu as seguintes teses:

1. O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar é, em regra, taxativo;

2.  A operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao rol;

3. É possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra rol;

4. Não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (i) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol da saúde suplementar; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como Conitec e Natjus) e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS.” (https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/08062022-Rol-da-ANS-e-taxativo--com-possibilidades-de-cobertura-de-procedimentos-nao-previstos-na-lista.aspx ).

As reações na sociedade foram imediatas.

A questão já foi levada ao Supremo Tribunal Federal, onde tramita a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.088, proposta pela Associação Brasileira de Proteção aos Consumidores de Planos e Sistema de Saúde (SAÚDE BRASIL), justamente contra o artigo 10 e contra mais alguns outros dispositivos da mencionada Lei Federal nº 9.656/1998. O Relator dessa importante ação é o Ministro ROBERTO BARROSO, mas ela ainda não julgada pelo Plenário do STF até o presente momento, tampouco há data prevista para isso.

No Congresso Nacional, já tramita projeto de lei que visa a determinar que o “rol da ANS” será exemplificativo, e não mais taxativo. Nesse sentido é o Projeto de Lei nº 1.556/2022, ainda não aprovado.

Também, de acordo com a revista eletrônica Consultor Jurídico, “há ainda, projetos de lei que, ao menos, visam tutelar a situação dos que serão os maiores atingidos pelas negativas. O PL 1584/2022 prevê que as operadoras não podem negar cobertura a pessoas com deficiência, os PLs 852/2022 e 457/2022 trazem a mesma previsão em relação às pessoas com autismo, e o PL 1179/2022 trata dos casos de doença rara”, estando em trâmite outras propostas legislativas sobre o assunto (https://www.conjur.com.br/2022-jun-10/stj-disputa-rol-ans-stf-congresso ), mas nenhuma dessas propostas foi aprovada até a presente data.

O fato incontroverso é que, doravante, os usuários de planos e seguros privados de saúde que não mais conseguirem obter procedimentos e tratamentos não obrigatoriamente impostos pela ANS às operadoras de saúde suplementar, inevitavelmente recorrerão ao Poder Judiciário para compelir ao SUS a fornecê-los, o que evidentemente trará ainda mais gastos e despesas do erário com a saúde pública.

Em conclusão, essas são as linhas gerais dos contornos atuais da saúde pública e da saúde privada no Brasil neste momento.

    ;

    Últimas Notícias